quinta-feira, 30 de maio de 2024

 

DOLORES

 

Conheci Dolores num desses encontros casuais da vida; gostei dela logo de cara, era alegre, sorridente e muito amigável. Ficamos de tomar um café na casa dela algum dia, trocamos número de telefone e depois de alguns dias marcamos e eu fui até lá. Era uma casa simples mais encantadora, era amarela com detalhes brancos, tinha um lindo jardim na frente. O portão era vazado, então de longe já se via flores rosas, brancas e laranjadas se agitando com o vento.

Dolores era só sorrisos, muito hospitaleira e boa de papo. Usava um vestido de tricolina com estampas de flores laranjadas. Sua casa era um encanto, tudo muito limpo e organizado. Na sala havia cortinas e almofadas floridas e tinha um pequeno jarro com flores do jardim em cima da mesinha de centro. Um lindo carpete marrom e vasos de plantas verdes por todos os cantos. Dolores era laboriosa e amava suas plantas. A casa era muito limpa, chegava a brilhar o piso e os móveis. Conheci suas três filhas, adolescentes entre 16 e 20 anos.

Dolores ficou feliz com minha visita, conversamos muito e rimos horrores. Depois ela foi fazer uns lanches, era uma ótima quitandeira. Fez bolos e pães de queijo. Comemos enquanto ela contava histórias e experiências. Era uma mulher na casa dos quarenta anos, seu marido chegou do trabalho abraçou-a e beijou ternamente sua cabeça. Me lembro de pensar “quero uma vida assim!”. Dava gosto de ver a família perfeita.

Algum tempo depois, me casei e me mudei pra outra cidade, passei mais de dois anos sem voltar a minha cidade natal, mas quando voltei fiz questão de visitar Dolores, meu exemplo de vida perfeita. Acontece que as coisas haviam mudado um pouco.

Dolores me recebeu com um abraço, mas não com um sorriso. Tinha os olhos vermelhos e marejados. Seus lindos cabelos cor de cobre agora tinha raízes brancas por falta de manutenção da cor. Seu belo jardim estava morto, ressecado por falta de regar e cheio de mato. Quando entrei na casa, meu coração chegou a doer. Suas plantas estavam mortas e havia muitas folhas secas pelo chão. A casa estava muito bagunçada e suja. Na cozinha era quase impossível entrar, parecia um lixão tinha moscas, vermes e fedia muito. Dolores mal conseguia andar, sentia muitas dores no corpo e na alma. Eu soube que ela havia sido diagnosticada com fibromialgia e depressão. As suas três filhas só sabiam ficar fechadas cada uma no seu quarto mergulhadas na internet, preocupadas apenas consigo mesmas. Dolores disse chorando que estava com fome, mas ninguém trouxe ou fez algo pra ela comer. Estava há dias sem tomar banho porque mal conseguia se movimentar por causa das dores.

Ajudei-a a se banhar, não dava para deitá-la em sua cama pois seu quarto também se transformara em um lixão, havia roupas sujas e fedidas pra todo lado. Deitei-a no sofá e fui comprar algo pra ela comer. Depois dei uma faxina na cozinha e na sala. Tive que usar máscara e luvas, mas ficou tudo limpo e organizado.

Falei com a filha mais velha dela, perguntei sobre seu pai, disse-me que ele comia fora e elas comiam com os amigos lanches e gostosuras todos os dias. E ninguém se lembrava que a mãe, a esposa também precisava comer. Quatro pessoas que ela sempre cuidava com tanto carinho e dedicação, simplesmente a abandonaram, ignoraram sua existência. Nenhum deles se prestou a cuidar de Dolores.

Voltei pra casa com o coração apertado, preocupada com o destino de Dolores. Doente, dopada e abandonada. Durante algum tempo eu ligava pra casa dela para ter notícias, mas depois acho que cortaram o telefone, não consegui mais saber dela. Quase um ano depois voltei a cidade. Fui ver Dolores...

A casa parecia abandonada. Suja, a pintura amarela estava descascada e onde era jardim, agora era só mato. Achei até que não morava ninguém lá mais; mesmo assim bati na porta. Uma das filhas atendeu, não a reconheci porque estava muito gorda. Ela disse me que a mãe saíra de casa, abandonara a família para virar sem teto. Não acreditei. Ela me indicou um abrigo onde de vez em quando Dolores aparecia para comer ou dormir. Incrédula, fui até lá. Minha amiga agora era uma mendiga? Mas porquê se ela tinha outra opção? Ela tinha casa, marido, filhas...estava muito difícil engolir essa história.

Não a encontrei no abrigo, mas me apontaram um assentamento ali perto e eu fui lá procura-la. Achei Dolores dormindo em uma rede. Estava descalça, vestida com uma calça larga com bolsos e uma blusa listrada com botões na frente. Os cabelos, anteriormente ruivos, agora estavam muito curtos e brancos.

Ela ficou feliz em me ver e estava sorridente de novo, radiante até. Perguntei o que houve e ela me contou.

Depois da sua última visita, eu até consegui voltar para o quarto. Arrumei o guarda-roupas, coloquei as roupas sujas na máquina e me deitei porque fiquei muito cansada, quando a gente sente dor o tempo todo sem parar, tudo fica muito exaustivo. Passei a semana toda deitada, tive febre, calafrios e muita dor. Como desejei uma comida quente ou um chazinho; mas ninguém da minha família cuidou de mim quando precisei, era como se eu não existisse. Eu ouvia minhas filhas e seus amigos rindo e conversando do outro lado da porta e tudo que eu queria era que elas abrissem a porta e dissessem “mamãe você está bem? Precisa de alguma coisa?” ou apenas para que eu pudesse vê-las. Mas ignoravam minha existência. Eu sentia o cheiro da comida que estavam comendo e meu estômago doía me fazendo contorcer na cama. Eu não conseguia me levantar. Meu marido, nunca mais vi. Um dia urinei na cama e isso foi a gota d’agua pra mim. Passei a noite em claro meditando e relembrando minha vida. Mais de trinta anos vivendo para cuidar dos outros e nunca de mim. Me levantei de manhã, tomei um banho, cortei meus cabelos que já estavam enormes e feios. Depois juntei os remédios para depressão numa sacola, joguei no lixo e fui embora apenas com a roupa do corpo. Me perguntei quanto tempo levaria para que percebessem. Eu não era nada para quem era tudo pra mim.

 Agora sou livre, não tenho nada, mas sou dona de mim. Se tenho que me virar sozinha, cuidar de mim mesma, então porque eu preciso de uma família? Amigos que nunca me visitaram?

Demonstraram falta de amor e consideração por mim quando eu não era mais útil, não se preocuparam com minha saúde, minha vida, por tudo que eu fui para eles, por anos. Essa é minha vida agora, não é a vida dos sonhos de ninguém mas estou feliz e minha consciência tranquila. Eu fui tudo que precisava ser, no devido tempo! .

Márcia Veríssimo, contos

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