DOLORES
Conheci
Dolores num desses encontros casuais da vida; gostei dela logo de cara, era
alegre, sorridente e muito amigável. Ficamos de tomar um café na casa dela
algum dia, trocamos número de telefone e depois de alguns dias marcamos e eu
fui até lá. Era uma casa simples mais encantadora, era amarela com detalhes
brancos, tinha um lindo jardim na frente. O portão era vazado, então de longe
já se via flores rosas, brancas e laranjadas se agitando com o vento.
Dolores
era só sorrisos, muito hospitaleira e boa de papo. Usava um vestido de tricolina
com estampas de flores laranjadas. Sua casa era um encanto, tudo muito limpo e
organizado. Na sala havia cortinas e almofadas floridas e tinha um pequeno
jarro com flores do jardim em cima da mesinha de centro. Um lindo carpete
marrom e vasos de plantas verdes por todos os cantos. Dolores era laboriosa e
amava suas plantas. A casa era muito limpa, chegava a brilhar o piso e os
móveis. Conheci suas três filhas, adolescentes entre 16 e 20 anos.
Dolores
ficou feliz com minha visita, conversamos muito e rimos horrores. Depois ela
foi fazer uns lanches, era uma ótima quitandeira. Fez bolos e pães de queijo.
Comemos enquanto ela contava histórias e experiências. Era uma mulher na casa
dos quarenta anos, seu marido chegou do trabalho abraçou-a e beijou ternamente
sua cabeça. Me lembro de pensar “quero uma vida assim!”. Dava gosto de ver a
família perfeita.
Algum
tempo depois, me casei e me mudei pra outra cidade, passei mais de dois anos
sem voltar a minha cidade natal, mas quando voltei fiz questão de visitar
Dolores, meu exemplo de vida perfeita. Acontece que as coisas haviam mudado um
pouco.
Dolores
me recebeu com um abraço, mas não com um sorriso. Tinha os olhos vermelhos e
marejados. Seus lindos cabelos cor de cobre agora tinha raízes brancas por
falta de manutenção da cor. Seu belo jardim estava morto, ressecado por falta
de regar e cheio de mato. Quando entrei na casa, meu coração chegou a doer.
Suas plantas estavam mortas e havia muitas folhas secas pelo chão. A casa
estava muito bagunçada e suja. Na cozinha era quase impossível entrar, parecia
um lixão tinha moscas, vermes e fedia muito. Dolores mal conseguia andar,
sentia muitas dores no corpo e na alma. Eu soube que ela havia sido
diagnosticada com fibromialgia e depressão. As suas três filhas só sabiam ficar
fechadas cada uma no seu quarto mergulhadas na internet, preocupadas apenas
consigo mesmas. Dolores disse chorando que estava com fome, mas ninguém trouxe
ou fez algo pra ela comer. Estava há dias sem tomar banho porque mal conseguia
se movimentar por causa das dores.
Ajudei-a
a se banhar, não dava para deitá-la em sua cama pois seu quarto também se
transformara em um lixão, havia roupas sujas e fedidas pra todo lado. Deitei-a
no sofá e fui comprar algo pra ela comer. Depois dei uma faxina na cozinha e na
sala. Tive que usar máscara e luvas, mas ficou tudo limpo e organizado.
Falei
com a filha mais velha dela, perguntei sobre seu pai, disse-me que ele comia
fora e elas comiam com os amigos lanches e gostosuras todos os dias. E ninguém
se lembrava que a mãe, a esposa também precisava comer. Quatro pessoas que ela
sempre cuidava com tanto carinho e dedicação, simplesmente a abandonaram,
ignoraram sua existência. Nenhum deles se prestou a cuidar de Dolores.
Voltei
pra casa com o coração apertado, preocupada com o destino de Dolores. Doente,
dopada e abandonada. Durante algum tempo eu ligava pra casa dela para ter
notícias, mas depois acho que cortaram o telefone, não consegui mais saber
dela. Quase um ano depois voltei a cidade. Fui ver Dolores...
A
casa parecia abandonada. Suja, a pintura amarela estava descascada e onde era
jardim, agora era só mato. Achei até que não morava ninguém lá mais; mesmo
assim bati na porta. Uma das filhas atendeu, não a reconheci porque estava
muito gorda. Ela disse me que a mãe saíra de casa, abandonara a família para
virar sem teto. Não acreditei. Ela me indicou um abrigo onde de vez em quando Dolores
aparecia para comer ou dormir. Incrédula, fui até lá. Minha amiga agora era uma
mendiga? Mas porquê se ela tinha outra opção? Ela tinha casa, marido, filhas...estava
muito difícil engolir essa história.
Não
a encontrei no abrigo, mas me apontaram um assentamento ali perto e eu fui lá
procura-la. Achei Dolores dormindo em uma rede. Estava descalça, vestida com
uma calça larga com bolsos e uma blusa listrada com botões na frente. Os
cabelos, anteriormente ruivos, agora estavam muito curtos e brancos.
Ela
ficou feliz em me ver e estava sorridente de novo, radiante até. Perguntei o
que houve e ela me contou.
“Depois da sua última visita, eu até consegui
voltar para o quarto. Arrumei o guarda-roupas, coloquei as roupas sujas na
máquina e me deitei porque fiquei muito cansada, quando a gente sente dor o
tempo todo sem parar, tudo fica muito exaustivo. Passei a semana toda deitada,
tive febre, calafrios e muita dor. Como desejei uma comida quente ou um
chazinho; mas ninguém da minha família cuidou de mim quando precisei, era como
se eu não existisse. Eu ouvia minhas filhas e seus amigos rindo e conversando
do outro lado da porta e tudo que eu queria era que elas abrissem a porta e dissessem
“mamãe você está bem? Precisa de alguma coisa?” ou apenas para que eu pudesse
vê-las. Mas ignoravam minha existência. Eu sentia o cheiro da comida que
estavam comendo e meu estômago doía me fazendo contorcer na cama. Eu não
conseguia me levantar. Meu marido, nunca mais vi. Um dia urinei na cama e isso
foi a gota d’agua pra mim. Passei a noite em claro meditando e relembrando
minha vida. Mais de trinta anos vivendo para cuidar dos outros e nunca de mim.
Me levantei de manhã, tomei um banho, cortei meus cabelos que já estavam
enormes e feios. Depois juntei os remédios para depressão numa sacola, joguei
no lixo e fui embora apenas com a roupa do corpo. Me perguntei quanto tempo
levaria para que percebessem. Eu não era nada para quem era tudo pra mim.
Agora sou livre, não tenho nada, mas sou dona
de mim. Se tenho que me virar sozinha, cuidar de mim mesma, então porque eu
preciso de uma família? Amigos que nunca me visitaram?
Demonstraram falta de amor e
consideração por mim quando eu não era mais útil, não se preocuparam com minha
saúde, minha vida, por tudo que eu fui para eles, por anos. Essa é minha vida
agora, não é a vida dos sonhos de ninguém mas estou feliz e minha consciência
tranquila. Eu fui tudo que precisava ser, no devido tempo! .
Márcia Veríssimo, contos
Nenhum comentário:
Postar um comentário