A Encomenda
Hoje completo 80 anos, minha memória não está muito boa, mas
de vez em quando me vem a lembrança de algum fato ou acontecimento da minha
vida. Recentemente me lembrei de um segredo que venho guardando a sete chaves
por muitos anos. Você já ouviu falar que crime perfeito não existe? Permita-me
discordar.
O ano era 1963, eu estava com dezenove anos e minha irmã
Elisa, vinte e dois. Elisa tinha um namorado, Jonas. Um dia minha irmã recebeu
um telegrama avisando da chegada de uma encomenda que ela deveria ir buscar na
sede dos correios. Ela insistiu pra eu ir com ela pois Jonas só poderia levar e
de lá iria para o trabalho e ela teria que voltar sozinha. Era uma grande
distância para andar, em torno de cinco quilômetros e só havia mato a volta. Saímos
por volta das dezessete horas, chegando lá minha irmã pegou sua encomenda, uma
caixa de uns quarenta centímetros. Até hoje não sei o que havia nela. Bem,
quando estávamos saindo um colega dela passou de moto e ofereceu carona, como
ela estava carregando uma caixa não muito leve, aceitou e me deixou sozinha com
cara de boba. Não conseguia acreditar e não consegui dizer nada tamanha a minha
surpresa enquanto via a moto ir ao longe. Fiquei um tempo parada olhando pro
nada. Depois comecei a andar, fazer o quê, tinha que voltar pra casa e como já
era quase dezoito horas, ia começar a escurecer logo.
No início caminhei rápido, olhando para os lados, muito
assustada achando que ia surgir uma onça a qualquer momento. A medida que
começou a escurecer, apareceu uma neblina densa, branca e fria. Foi ficando
cada vez mais difícil enxergar a certa distância. Avistei a poucos metros uma
moça e andei mais rápido para alcança-la. Era uma moça amigável, negra, esguia
e tinha cabelos cheios. Era muito bonita! Começamos a conversar sobre a neblina
e um assunto puxava outro de modo que o caminho ficou mais fácil de ser
percorrido. Faltava pouco mais de um quilômetro para entrarmos na cidade quando
ouvimos o motor de um carro parando. Achei estranho um carro parando assim no
meio do nada e diminuí o passo. Ela me chamou de medrosa e continuou andando.
Quando passei pelo carro, não dava pra ver ninguém dentro. Minha intuição
gritava na minha cabeça, CORRA, e eu corri. Ouvi as risadas dela rindo de mim,
me chamando de medrosa.
Corri até minhas pernas falharem, eu tremia muito e não
conseguia me manter de pé. Bati na primeira casa que encontrei, uma senhora
abriu; quis saber do que eu estava fugindo, mas eu não soube dizer. Apenas
obedeci a minha intuição, não sabia mesmo do que eu fugia.
Já em casa, levei uma bronca por chegar em casa de noite. Eu
tentei fazer minha irmã confessar que me deixou pra trás no correio, mas ela
morria de medo que soubessem que ela tinha pegado carona de moto. Naquela época
era um escândalo mulher andar na garupa de moto. Ela era a filha perfeita e
nossos pais nunca esconderam sua preferência. Como castigo fui dormir sem
jantar. Fiquei com muita raiva. Na madrugada, um amigo do meu pai, Wilson, que
era da polícia passou para deixar suas coisas. Duas vezes por semana ele fazia
caminhada e corria em volta de uma construção que havia em frente a nossa casa.
Estavam construindo um ginásio. Ele deixava sua arma e carteira em cima do
guarda-roupas e seu uniforme em cima da cama. Caminhava por uma hora e depois
pegava suas coisas, tomava um café e conversava um pouco com minha mãe pois meu
pai já havia saído para o trabalho. Toda semana era a mesma coisa, as terças corria
a noitinha e quintas, de manhazinha.
Passamos o fim de semana na chácara de uns amigos dos meus
pais. Tomamos banho na lagoa, pescamos, andamos a cavalo, tomamos leite in
natura... Nossos fins de semana eram sempre os mesmos, mas até que era
divertido. Havia outros jovens lá, em especial um rapaz de uns vinte anos
chamado Rafael. Sempre que conseguíamos despistar os outros, nos beijávamos e
dávamos uns amassos escondidos.
Na segunda-feira quando eu estava indo para o curso de corte
e costura passei na livraria para comprar quadrinhos e palavras cruzadas. O
jornal da cidade estampava uma foto que me deixou em choque. A moça que eu
conheci a caminho de casa, seu rosto estampava a primeira página e um aviso de
desaparecida. De repente, sua risada me veio a mente, foi a última coisa que
ouvi antes de começar a correr. Nos dias que se seguiram, eu fiquei muito
silenciosa e pensativa sobre o que teria acontecido. Até minha família
estranhou meu silêncio. Encontraram seu corpo, havia sido estrangulada e seu
corpo foi encontrado perto de onde aquele carro estivera parado. Na semana
seguinte apareceu outro corpo e depois outro. As pessoas da pequena cidade que
eu morava estavam em polvorosa e a polícia sem pistas.
Lembrei-me do medo que senti e do frio na espinha antes de
correr feito doida. Comecei a maquinar uma coisa na cabeça, nos dias seguintes
quanto mais eu tentava parar de pensar naquilo, mais eu pensava. Então, numa
terça-feira quando o policial Wilson deixou suas coisas para ir correr;
discretamente peguei sua arma, retirei com cuidado do coldre. Verifiquei se
estava carregada. Me lembrei das instruções do meu pai quando íamos caçar na
fazenda. Peguei a bicicleta da minha irmã e fui o mais perto possível do local
onde o carro parava. Escondi a bicicleta em uma moita e entrei no cerrado,
sentei embaixo de uma sibipiruna de caule grosso e esperei. Quando começou a
anoitecer escutei o motor do carro, essa noite não tinha neblina. Vi um homem
saindo do carro, não dava pra ver seu rosto na penumbra. Ele olhou a volta e
depois foi até uma moita urinar. Reconheci o carro. Era ele! Não tinha dúvida
que era ele o assassino das garotas. Quando ele voltava para o carro, atirei
bem no meio das costas. Ele caiu, mas estava vivo, então me aproximei e atirei
novamente, dessa vez na cabeça. Voltei pra casa quase voando de bicicleta, meu
coração palpitava tão forte que doía. Eu ouvia meus batimentos como se
estivessem dentro dos meus ouvidos. Passei rápido para o quarto de despejo e
guardei a arma de volta no lugar. Poucos minutos depois Wilson chegou.
Não consegui dormir a noite toda, estava em êxtase. Não
conseguia me acalmar e nem tirar o sorriso malicioso dos lábios. No dia
seguinte saí cedo para o trabalho de babá, eu ficava até meio dia com uma
menina de dois anos, a mãe era professora e trabalhava na parte da manhã.
Quando voltava pra casa me deparei com uma cena na porta de casa, o policial
Wilson abraçado a minha mãe que chorava. Haviam dois carros de policia na porta
da minha casa, disseram que meu pai havia sido assassinado. Quando investigaram
para procurar possíveis motivos e suspeitos, descobri que era ele na rodovia e
o carro era dos que estavam na oficina dele. A policia encontrou várias provas
que ligavam meu pai aos assassinatos das moças. Ele tinha um quarto secreto na
oficina onde guardava suvenires como colares, mechas de cabelos, lingeries e outros.
Não sei se fiquei surpresa, meu pai sempre foi quieto demais, tenho medo desse
tipo de gente.
Um ano depois minha mãe se casou com o policial Wilson e
nunca desvendaram o misterioso assassinato do assassino da rodovia.
Márcia Veríssimo, contos
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