quinta-feira, 30 de maio de 2024

 

A Encomenda

Hoje completo 80 anos, minha memória não está muito boa, mas de vez em quando me vem a lembrança de algum fato ou acontecimento da minha vida. Recentemente me lembrei de um segredo que venho guardando a sete chaves por muitos anos. Você já ouviu falar que crime perfeito não existe? Permita-me discordar.

O ano era 1963, eu estava com dezenove anos e minha irmã Elisa, vinte e dois. Elisa tinha um namorado, Jonas. Um dia minha irmã recebeu um telegrama avisando da chegada de uma encomenda que ela deveria ir buscar na sede dos correios. Ela insistiu pra eu ir com ela pois Jonas só poderia levar e de lá iria para o trabalho e ela teria que voltar sozinha. Era uma grande distância para andar, em torno de cinco quilômetros e só havia mato a volta. Saímos por volta das dezessete horas, chegando lá minha irmã pegou sua encomenda, uma caixa de uns quarenta centímetros. Até hoje não sei o que havia nela. Bem, quando estávamos saindo um colega dela passou de moto e ofereceu carona, como ela estava carregando uma caixa não muito leve, aceitou e me deixou sozinha com cara de boba. Não conseguia acreditar e não consegui dizer nada tamanha a minha surpresa enquanto via a moto ir ao longe. Fiquei um tempo parada olhando pro nada. Depois comecei a andar, fazer o quê, tinha que voltar pra casa e como já era quase dezoito horas, ia começar a escurecer logo.

No início caminhei rápido, olhando para os lados, muito assustada achando que ia surgir uma onça a qualquer momento. A medida que começou a escurecer, apareceu uma neblina densa, branca e fria. Foi ficando cada vez mais difícil enxergar a certa distância. Avistei a poucos metros uma moça e andei mais rápido para alcança-la. Era uma moça amigável, negra, esguia e tinha cabelos cheios. Era muito bonita! Começamos a conversar sobre a neblina e um assunto puxava outro de modo que o caminho ficou mais fácil de ser percorrido. Faltava pouco mais de um quilômetro para entrarmos na cidade quando ouvimos o motor de um carro parando. Achei estranho um carro parando assim no meio do nada e diminuí o passo. Ela me chamou de medrosa e continuou andando. Quando passei pelo carro, não dava pra ver ninguém dentro. Minha intuição gritava na minha cabeça, CORRA, e eu corri. Ouvi as risadas dela rindo de mim, me chamando de medrosa.

Corri até minhas pernas falharem, eu tremia muito e não conseguia me manter de pé. Bati na primeira casa que encontrei, uma senhora abriu; quis saber do que eu estava fugindo, mas eu não soube dizer. Apenas obedeci a minha intuição, não sabia mesmo do que eu fugia.

Já em casa, levei uma bronca por chegar em casa de noite. Eu tentei fazer minha irmã confessar que me deixou pra trás no correio, mas ela morria de medo que soubessem que ela tinha pegado carona de moto. Naquela época era um escândalo mulher andar na garupa de moto. Ela era a filha perfeita e nossos pais nunca esconderam sua preferência. Como castigo fui dormir sem jantar. Fiquei com muita raiva. Na madrugada, um amigo do meu pai, Wilson, que era da polícia passou para deixar suas coisas. Duas vezes por semana ele fazia caminhada e corria em volta de uma construção que havia em frente a nossa casa. Estavam construindo um ginásio. Ele deixava sua arma e carteira em cima do guarda-roupas e seu uniforme em cima da cama. Caminhava por uma hora e depois pegava suas coisas, tomava um café e conversava um pouco com minha mãe pois meu pai já havia saído para o trabalho. Toda semana era a mesma coisa, as terças corria a noitinha e quintas, de manhazinha.

Passamos o fim de semana na chácara de uns amigos dos meus pais. Tomamos banho na lagoa, pescamos, andamos a cavalo, tomamos leite in natura... Nossos fins de semana eram sempre os mesmos, mas até que era divertido. Havia outros jovens lá, em especial um rapaz de uns vinte anos chamado Rafael. Sempre que conseguíamos despistar os outros, nos beijávamos e dávamos uns amassos escondidos.

Na segunda-feira quando eu estava indo para o curso de corte e costura passei na livraria para comprar quadrinhos e palavras cruzadas. O jornal da cidade estampava uma foto que me deixou em choque. A moça que eu conheci a caminho de casa, seu rosto estampava a primeira página e um aviso de desaparecida. De repente, sua risada me veio a mente, foi a última coisa que ouvi antes de começar a correr. Nos dias que se seguiram, eu fiquei muito silenciosa e pensativa sobre o que teria acontecido. Até minha família estranhou meu silêncio. Encontraram seu corpo, havia sido estrangulada e seu corpo foi encontrado perto de onde aquele carro estivera parado. Na semana seguinte apareceu outro corpo e depois outro. As pessoas da pequena cidade que eu morava estavam em polvorosa e a polícia sem pistas.

Lembrei-me do medo que senti e do frio na espinha antes de correr feito doida. Comecei a maquinar uma coisa na cabeça, nos dias seguintes quanto mais eu tentava parar de pensar naquilo, mais eu pensava. Então, numa terça-feira quando o policial Wilson deixou suas coisas para ir correr; discretamente peguei sua arma, retirei com cuidado do coldre. Verifiquei se estava carregada. Me lembrei das instruções do meu pai quando íamos caçar na fazenda. Peguei a bicicleta da minha irmã e fui o mais perto possível do local onde o carro parava. Escondi a bicicleta em uma moita e entrei no cerrado, sentei embaixo de uma sibipiruna de caule grosso e esperei. Quando começou a anoitecer escutei o motor do carro, essa noite não tinha neblina. Vi um homem saindo do carro, não dava pra ver seu rosto na penumbra. Ele olhou a volta e depois foi até uma moita urinar. Reconheci o carro. Era ele! Não tinha dúvida que era ele o assassino das garotas. Quando ele voltava para o carro, atirei bem no meio das costas. Ele caiu, mas estava vivo, então me aproximei e atirei novamente, dessa vez na cabeça. Voltei pra casa quase voando de bicicleta, meu coração palpitava tão forte que doía. Eu ouvia meus batimentos como se estivessem dentro dos meus ouvidos. Passei rápido para o quarto de despejo e guardei a arma de volta no lugar. Poucos minutos depois Wilson chegou.

Não consegui dormir a noite toda, estava em êxtase. Não conseguia me acalmar e nem tirar o sorriso malicioso dos lábios. No dia seguinte saí cedo para o trabalho de babá, eu ficava até meio dia com uma menina de dois anos, a mãe era professora e trabalhava na parte da manhã. Quando voltava pra casa me deparei com uma cena na porta de casa, o policial Wilson abraçado a minha mãe que chorava. Haviam dois carros de policia na porta da minha casa, disseram que meu pai havia sido assassinado. Quando investigaram para procurar possíveis motivos e suspeitos, descobri que era ele na rodovia e o carro era dos que estavam na oficina dele. A policia encontrou várias provas que ligavam meu pai aos assassinatos das moças. Ele tinha um quarto secreto na oficina onde guardava suvenires como colares, mechas de cabelos, lingeries e outros. Não sei se fiquei surpresa, meu pai sempre foi quieto demais, tenho medo desse tipo de gente.

Um ano depois minha mãe se casou com o policial Wilson e nunca desvendaram o misterioso assassinato do assassino da rodovia.

Márcia Veríssimo, contos

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