quarta-feira, 3 de julho de 2024

 

Crisálida

Dia após dia...comer, comer, ir de um lado pro outro, mudando de galho em galho e de novo, de novo e de novo. Mecanicamente, religiosamente, vez após vez a mesma coisa. Os dias vão passando e são todos iguais, nada muda. Tudo que vejo todos os dias são folhas verdes, todas igualmente tediosas e relativamente imóveis. Anos esperando, rezando, esperando de novo por um milagre, um acontecimento que mudará tudo. A longa espera terá valido a pena, porque quando esse milagre acontecer abrirei minhas lindas asas e conhecerei o mundo. Verei flores diversas em cores, cheiros e sabores. Tudo será mais belo e minha vida, gratificante e cheia de aventuras. Mas ...e se não acontecer? Se for apenas uma esperança infundada a qual me agarro com todas as forças do meu ser?

Eu já tentei, juro que tentei perder a esperança e a fé, mas é como se estivesse tão fortemente arraigada que não tenho forças para arrancá-la de lá. À noite, enquanto todos dormem, eu me arrasto para outra árvore ou outro galho esperando, talvez, que esta tenha a resposta. Mas nunca tem...é só essa fé maldita me enganando de novo e de novo!

Já sentiu em sua alma um desejo tão intenso por justiça que chega a queimar? Um dia cansei de esperar pela justiça divina. Desejei tanto sair do meu infame casulo, que consegui, mas ninguém percebeu. Eu já era invisível há tanto tempo que ninguém notou quando me libertei. Resolvi que era uma vantagem e eu finalmente poderia fazer, com minhas próprias mãos, a justiça que tanto esperei que Deus fizesse por mim.

Durante anos, guardei, fiz anotações e lembretes. Agora minha lista está pronta e está na hora de fazer um pouco de justiça, pra variar.  

 

 

 

Elemento 1

 

O primeiro indivíduo que visitei era médico. Daqueles que o papai comprou o diploma e consecutivamente um emprego na rede pública. Aqueles que só se torna médico pelo status e para “passar o rodo” nas colegas de profissão e enfermeiras. Do tipo que, enquanto as pessoas estão sofrendo, gemendo em uma espera de no mínimo quatro horas, está no consultório trepando com alguém. Pois é, revoltante! Mas vi isso acontecer em um hospital público. Estive algumas vezes nessa interminável espera. Você passa por toda a tortura de esperar sentado em uma cadeira desconfortável, as vezes a noite toda, passa fome, cansaço e dor pra no fim o médico mal olhar pra sua cara, não ouvir uma palavra do que você diz e apenas te mandar pra fila da Dipirona. O governo deve ter algum lucro com o fabricante, só pode.

Ele era um sujeito muito previsível, tinha menos de trinta anos, era de estatura mediana, branco, relativamente bonito. Dormia o dia todo, ou jogava videogame, morava sozinho no apartamento que o papai deu. No inicio da noite pegava seu sedã que o papai deu e ia dar plantão no hospital. Uma vez por semana. Andava pelos corredores como se fosse o dono do lugar, perto das funcionárias jovens, ele desfilava jogando charme e sorrisinhos safados. Cada noite pegava uma funcionária diferente. As vezes parece que as mulheres adoram esse tipo, malandro que as usa e descarta como as luvas cirúrgicas que usam. Enquanto a sala de espera ficava cada vez mais cheia, ele enrolava no cafezinho jogando charme pra alguma desavisada. Depois desfilava sorridente pelo corredor até o consultório número quatro. Quando começava a atender, ou melhor, agir como intermediário entre o paciente e a dipirona, ele fazia longas pausas entre um e outro. Adorava ver a humilhação que o doente passava apenas pra chegar até ele. Sentia-se um deus!

Decidi que era hora de derrubá-lo do seu trono celestial.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

 

DOLORES

 

Conheci Dolores num desses encontros casuais da vida; gostei dela logo de cara, era alegre, sorridente e muito amigável. Ficamos de tomar um café na casa dela algum dia, trocamos número de telefone e depois de alguns dias marcamos e eu fui até lá. Era uma casa simples mais encantadora, era amarela com detalhes brancos, tinha um lindo jardim na frente. O portão era vazado, então de longe já se via flores rosas, brancas e laranjadas se agitando com o vento.

Dolores era só sorrisos, muito hospitaleira e boa de papo. Usava um vestido de tricolina com estampas de flores laranjadas. Sua casa era um encanto, tudo muito limpo e organizado. Na sala havia cortinas e almofadas floridas e tinha um pequeno jarro com flores do jardim em cima da mesinha de centro. Um lindo carpete marrom e vasos de plantas verdes por todos os cantos. Dolores era laboriosa e amava suas plantas. A casa era muito limpa, chegava a brilhar o piso e os móveis. Conheci suas três filhas, adolescentes entre 16 e 20 anos.

Dolores ficou feliz com minha visita, conversamos muito e rimos horrores. Depois ela foi fazer uns lanches, era uma ótima quitandeira. Fez bolos e pães de queijo. Comemos enquanto ela contava histórias e experiências. Era uma mulher na casa dos quarenta anos, seu marido chegou do trabalho abraçou-a e beijou ternamente sua cabeça. Me lembro de pensar “quero uma vida assim!”. Dava gosto de ver a família perfeita.

Algum tempo depois, me casei e me mudei pra outra cidade, passei mais de dois anos sem voltar a minha cidade natal, mas quando voltei fiz questão de visitar Dolores, meu exemplo de vida perfeita. Acontece que as coisas haviam mudado um pouco.

Dolores me recebeu com um abraço, mas não com um sorriso. Tinha os olhos vermelhos e marejados. Seus lindos cabelos cor de cobre agora tinha raízes brancas por falta de manutenção da cor. Seu belo jardim estava morto, ressecado por falta de regar e cheio de mato. Quando entrei na casa, meu coração chegou a doer. Suas plantas estavam mortas e havia muitas folhas secas pelo chão. A casa estava muito bagunçada e suja. Na cozinha era quase impossível entrar, parecia um lixão tinha moscas, vermes e fedia muito. Dolores mal conseguia andar, sentia muitas dores no corpo e na alma. Eu soube que ela havia sido diagnosticada com fibromialgia e depressão. As suas três filhas só sabiam ficar fechadas cada uma no seu quarto mergulhadas na internet, preocupadas apenas consigo mesmas. Dolores disse chorando que estava com fome, mas ninguém trouxe ou fez algo pra ela comer. Estava há dias sem tomar banho porque mal conseguia se movimentar por causa das dores.

Ajudei-a a se banhar, não dava para deitá-la em sua cama pois seu quarto também se transformara em um lixão, havia roupas sujas e fedidas pra todo lado. Deitei-a no sofá e fui comprar algo pra ela comer. Depois dei uma faxina na cozinha e na sala. Tive que usar máscara e luvas, mas ficou tudo limpo e organizado.

Falei com a filha mais velha dela, perguntei sobre seu pai, disse-me que ele comia fora e elas comiam com os amigos lanches e gostosuras todos os dias. E ninguém se lembrava que a mãe, a esposa também precisava comer. Quatro pessoas que ela sempre cuidava com tanto carinho e dedicação, simplesmente a abandonaram, ignoraram sua existência. Nenhum deles se prestou a cuidar de Dolores.

Voltei pra casa com o coração apertado, preocupada com o destino de Dolores. Doente, dopada e abandonada. Durante algum tempo eu ligava pra casa dela para ter notícias, mas depois acho que cortaram o telefone, não consegui mais saber dela. Quase um ano depois voltei a cidade. Fui ver Dolores...

A casa parecia abandonada. Suja, a pintura amarela estava descascada e onde era jardim, agora era só mato. Achei até que não morava ninguém lá mais; mesmo assim bati na porta. Uma das filhas atendeu, não a reconheci porque estava muito gorda. Ela disse me que a mãe saíra de casa, abandonara a família para virar sem teto. Não acreditei. Ela me indicou um abrigo onde de vez em quando Dolores aparecia para comer ou dormir. Incrédula, fui até lá. Minha amiga agora era uma mendiga? Mas porquê se ela tinha outra opção? Ela tinha casa, marido, filhas...estava muito difícil engolir essa história.

Não a encontrei no abrigo, mas me apontaram um assentamento ali perto e eu fui lá procura-la. Achei Dolores dormindo em uma rede. Estava descalça, vestida com uma calça larga com bolsos e uma blusa listrada com botões na frente. Os cabelos, anteriormente ruivos, agora estavam muito curtos e brancos.

Ela ficou feliz em me ver e estava sorridente de novo, radiante até. Perguntei o que houve e ela me contou.

Depois da sua última visita, eu até consegui voltar para o quarto. Arrumei o guarda-roupas, coloquei as roupas sujas na máquina e me deitei porque fiquei muito cansada, quando a gente sente dor o tempo todo sem parar, tudo fica muito exaustivo. Passei a semana toda deitada, tive febre, calafrios e muita dor. Como desejei uma comida quente ou um chazinho; mas ninguém da minha família cuidou de mim quando precisei, era como se eu não existisse. Eu ouvia minhas filhas e seus amigos rindo e conversando do outro lado da porta e tudo que eu queria era que elas abrissem a porta e dissessem “mamãe você está bem? Precisa de alguma coisa?” ou apenas para que eu pudesse vê-las. Mas ignoravam minha existência. Eu sentia o cheiro da comida que estavam comendo e meu estômago doía me fazendo contorcer na cama. Eu não conseguia me levantar. Meu marido, nunca mais vi. Um dia urinei na cama e isso foi a gota d’agua pra mim. Passei a noite em claro meditando e relembrando minha vida. Mais de trinta anos vivendo para cuidar dos outros e nunca de mim. Me levantei de manhã, tomei um banho, cortei meus cabelos que já estavam enormes e feios. Depois juntei os remédios para depressão numa sacola, joguei no lixo e fui embora apenas com a roupa do corpo. Me perguntei quanto tempo levaria para que percebessem. Eu não era nada para quem era tudo pra mim.

 Agora sou livre, não tenho nada, mas sou dona de mim. Se tenho que me virar sozinha, cuidar de mim mesma, então porque eu preciso de uma família? Amigos que nunca me visitaram?

Demonstraram falta de amor e consideração por mim quando eu não era mais útil, não se preocuparam com minha saúde, minha vida, por tudo que eu fui para eles, por anos. Essa é minha vida agora, não é a vida dos sonhos de ninguém mas estou feliz e minha consciência tranquila. Eu fui tudo que precisava ser, no devido tempo! .

Márcia Veríssimo, contos

 

A Encomenda

Hoje completo 80 anos, minha memória não está muito boa, mas de vez em quando me vem a lembrança de algum fato ou acontecimento da minha vida. Recentemente me lembrei de um segredo que venho guardando a sete chaves por muitos anos. Você já ouviu falar que crime perfeito não existe? Permita-me discordar.

O ano era 1963, eu estava com dezenove anos e minha irmã Elisa, vinte e dois. Elisa tinha um namorado, Jonas. Um dia minha irmã recebeu um telegrama avisando da chegada de uma encomenda que ela deveria ir buscar na sede dos correios. Ela insistiu pra eu ir com ela pois Jonas só poderia levar e de lá iria para o trabalho e ela teria que voltar sozinha. Era uma grande distância para andar, em torno de cinco quilômetros e só havia mato a volta. Saímos por volta das dezessete horas, chegando lá minha irmã pegou sua encomenda, uma caixa de uns quarenta centímetros. Até hoje não sei o que havia nela. Bem, quando estávamos saindo um colega dela passou de moto e ofereceu carona, como ela estava carregando uma caixa não muito leve, aceitou e me deixou sozinha com cara de boba. Não conseguia acreditar e não consegui dizer nada tamanha a minha surpresa enquanto via a moto ir ao longe. Fiquei um tempo parada olhando pro nada. Depois comecei a andar, fazer o quê, tinha que voltar pra casa e como já era quase dezoito horas, ia começar a escurecer logo.

No início caminhei rápido, olhando para os lados, muito assustada achando que ia surgir uma onça a qualquer momento. A medida que começou a escurecer, apareceu uma neblina densa, branca e fria. Foi ficando cada vez mais difícil enxergar a certa distância. Avistei a poucos metros uma moça e andei mais rápido para alcança-la. Era uma moça amigável, negra, esguia e tinha cabelos cheios. Era muito bonita! Começamos a conversar sobre a neblina e um assunto puxava outro de modo que o caminho ficou mais fácil de ser percorrido. Faltava pouco mais de um quilômetro para entrarmos na cidade quando ouvimos o motor de um carro parando. Achei estranho um carro parando assim no meio do nada e diminuí o passo. Ela me chamou de medrosa e continuou andando. Quando passei pelo carro, não dava pra ver ninguém dentro. Minha intuição gritava na minha cabeça, CORRA, e eu corri. Ouvi as risadas dela rindo de mim, me chamando de medrosa.

Corri até minhas pernas falharem, eu tremia muito e não conseguia me manter de pé. Bati na primeira casa que encontrei, uma senhora abriu; quis saber do que eu estava fugindo, mas eu não soube dizer. Apenas obedeci a minha intuição, não sabia mesmo do que eu fugia.

Já em casa, levei uma bronca por chegar em casa de noite. Eu tentei fazer minha irmã confessar que me deixou pra trás no correio, mas ela morria de medo que soubessem que ela tinha pegado carona de moto. Naquela época era um escândalo mulher andar na garupa de moto. Ela era a filha perfeita e nossos pais nunca esconderam sua preferência. Como castigo fui dormir sem jantar. Fiquei com muita raiva. Na madrugada, um amigo do meu pai, Wilson, que era da polícia passou para deixar suas coisas. Duas vezes por semana ele fazia caminhada e corria em volta de uma construção que havia em frente a nossa casa. Estavam construindo um ginásio. Ele deixava sua arma e carteira em cima do guarda-roupas e seu uniforme em cima da cama. Caminhava por uma hora e depois pegava suas coisas, tomava um café e conversava um pouco com minha mãe pois meu pai já havia saído para o trabalho. Toda semana era a mesma coisa, as terças corria a noitinha e quintas, de manhazinha.

Passamos o fim de semana na chácara de uns amigos dos meus pais. Tomamos banho na lagoa, pescamos, andamos a cavalo, tomamos leite in natura... Nossos fins de semana eram sempre os mesmos, mas até que era divertido. Havia outros jovens lá, em especial um rapaz de uns vinte anos chamado Rafael. Sempre que conseguíamos despistar os outros, nos beijávamos e dávamos uns amassos escondidos.

Na segunda-feira quando eu estava indo para o curso de corte e costura passei na livraria para comprar quadrinhos e palavras cruzadas. O jornal da cidade estampava uma foto que me deixou em choque. A moça que eu conheci a caminho de casa, seu rosto estampava a primeira página e um aviso de desaparecida. De repente, sua risada me veio a mente, foi a última coisa que ouvi antes de começar a correr. Nos dias que se seguiram, eu fiquei muito silenciosa e pensativa sobre o que teria acontecido. Até minha família estranhou meu silêncio. Encontraram seu corpo, havia sido estrangulada e seu corpo foi encontrado perto de onde aquele carro estivera parado. Na semana seguinte apareceu outro corpo e depois outro. As pessoas da pequena cidade que eu morava estavam em polvorosa e a polícia sem pistas.

Lembrei-me do medo que senti e do frio na espinha antes de correr feito doida. Comecei a maquinar uma coisa na cabeça, nos dias seguintes quanto mais eu tentava parar de pensar naquilo, mais eu pensava. Então, numa terça-feira quando o policial Wilson deixou suas coisas para ir correr; discretamente peguei sua arma, retirei com cuidado do coldre. Verifiquei se estava carregada. Me lembrei das instruções do meu pai quando íamos caçar na fazenda. Peguei a bicicleta da minha irmã e fui o mais perto possível do local onde o carro parava. Escondi a bicicleta em uma moita e entrei no cerrado, sentei embaixo de uma sibipiruna de caule grosso e esperei. Quando começou a anoitecer escutei o motor do carro, essa noite não tinha neblina. Vi um homem saindo do carro, não dava pra ver seu rosto na penumbra. Ele olhou a volta e depois foi até uma moita urinar. Reconheci o carro. Era ele! Não tinha dúvida que era ele o assassino das garotas. Quando ele voltava para o carro, atirei bem no meio das costas. Ele caiu, mas estava vivo, então me aproximei e atirei novamente, dessa vez na cabeça. Voltei pra casa quase voando de bicicleta, meu coração palpitava tão forte que doía. Eu ouvia meus batimentos como se estivessem dentro dos meus ouvidos. Passei rápido para o quarto de despejo e guardei a arma de volta no lugar. Poucos minutos depois Wilson chegou.

Não consegui dormir a noite toda, estava em êxtase. Não conseguia me acalmar e nem tirar o sorriso malicioso dos lábios. No dia seguinte saí cedo para o trabalho de babá, eu ficava até meio dia com uma menina de dois anos, a mãe era professora e trabalhava na parte da manhã. Quando voltava pra casa me deparei com uma cena na porta de casa, o policial Wilson abraçado a minha mãe que chorava. Haviam dois carros de policia na porta da minha casa, disseram que meu pai havia sido assassinado. Quando investigaram para procurar possíveis motivos e suspeitos, descobri que era ele na rodovia e o carro era dos que estavam na oficina dele. A policia encontrou várias provas que ligavam meu pai aos assassinatos das moças. Ele tinha um quarto secreto na oficina onde guardava suvenires como colares, mechas de cabelos, lingeries e outros. Não sei se fiquei surpresa, meu pai sempre foi quieto demais, tenho medo desse tipo de gente.

Um ano depois minha mãe se casou com o policial Wilson e nunca desvendaram o misterioso assassinato do assassino da rodovia.

Márcia Veríssimo, contos